“Saudade” é uma daquelas palavras intraduzíveis, tão profundamente enraizadas na nossa língua que não cabem em outros idiomas. Para quem mora fora do Brasil, especialmente para brasileiras que escolheram viver em outro país, a saudade da família pode ser uma presença constante. Ela é sentida no corpo, nas pequenas rotinas, nos silêncios barulhentos e nas datas especiais. É um sentimento que atravessa fronteiras, atravessa a pele e se instala no peito – com ternura e dor.
Neste texto, vamos refletir, com delicadeza e profundidade, sobre o que significa sentir saudade da família na experiência de quem imigrou. Vamos conversar sobre o impacto emocional dessa saudade, os dilemas existenciais que ela desperta, e como é possível acolher essa dor de forma autêntica, sem negá-la ou minimizá-la. Porque sentir saudade é também sinal de que o amor segue vivo – e por isso a parte do “sentimento agridoce” no título.
É importante dizer que a saudade não é uma experiência unicamente daquelas que vão para fora do país. Até mesmo pessoas que fazem imigrações internas, de um estado do Brasil para outro, também podem compartilhar o espaço com ela. E esse texto também serve para essas mulheres.
A saudade como expressão de amor
Para começar, é importante dizer: sentir saudade da família é normal. Mais do que isso, é humano. Segundo Viktor Frankl, criador da logoterapia, o sofrimento se torna suportável quando ele está a serviço de um sentido. E a saudade, por mais dolorida que seja, pode funcionar como uma expressão direta do nosso amor. Ela não surge do vazio, mas da conexão. Ela é o eco da presença de quem amamos e, com certeza, não é oca por dentro. Para ler mais sobre a importância de encontrar sentido no sofrimento, já temos um blogpost que aborda isso aqui no site.
Quando deixamos o país de origem, não estamos apenas mudando de localidade. Estamos abrindo mão de um sistema afetivo, de rotinas compartilhadas, de cheiros, sabores e gestos que nos moldaram. A família, para muitas brasileiras imigrantes, é esse porto seguro emocional. Estar longe desse porto, muitas vezes, é como navegar em águas desconhecidas sem a certeza de um retorno – e, o que pode pesar para muitas, é a culpa por terem escolhido navegar por essas águas, tema que será abordado no próximo tópico.
Além disso, a saudade não se limita apenas às pessoas. Sentimos saudade da casa da avó, do cheiro da comida da mãe, do barulho da televisão com o jornal nacional no fundo, do som da chuva batendo na janela da casa que morava na infância. Sentimos saudade de lugares, de sabores, de cheiros e de sensações. Inclusive, a saudade da família pode ser, muitas vezes, uma saudade de nós mesmas em um tempo e lugar onde nos sentíamos mais inteiras e seguras.
A complexidade emocional da imigração
Imigrar é uma escolha complexa (leia o artigo: preparação emocional para a imigração). Envolve sonho, coragem, esperança, mas também luto. Carl Rogers falava da importância de sermos autênticos e fiéis à nossa experiência interna. E muitas vezes, no processo migratório, existe uma tendência a silenciar a dor para não preocupar quem ficou, ou para manter a imagem de que “está tudo bem”.
Mas a verdade é que muitas mulheres sentem culpa por estar longe, especialmente quando pensam em aniversários, em datas comemorativas, ou quando surge uma doença na família. Às vezes, há uma dor importante por não poder estar presente, por não poder cuidar, por não participar das pequenas e grandes coisas da vida de quem amamos. Essa culpa pode se somar à saudade e virar um peso difícil de carregar sozinha.
Existe também a culpa por estar bem. Parece contraditório, mas muitas mulheres sentem culpa por estarem realizando sonhos, por estarem felizes, enquanto os pais envelhecem no Brasil, ou enfrentam dificuldades. Essa culpa invisível se soma ao desafio de construir uma vida em outro país e pode se manifestar de muitas formas: ansiedade, tristeza, irritabilidade, cansaço emocional.
Por isso é tão importante olhar para a imigração como uma experiência emocional e existencial profunda. Não se trata apenas de morar fora, mas de reconstruir-se em outro idioma, em outra cultura, em outro ritmo, em outra subjetividade. E a saudade da família é uma das expressões mais potentes desse processo.
O pertencimento dividido
A saudade também tem relação com o sentimento de não-pertencimento pleno. Muitas brasileiras no exterior sentem que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, mas não completamente a nenhum. Rollo May, em sua obra sobre liberdade e destino, fala da angústia como parte inerente da condição humana. Estar entre dois países, entre duas culturas, pode gerar uma sensação constante de suspensão, como se a gente estivesse sempre com um pé aqui e outro lá.
Nesse contexto, a família representa uma identidade de origem. É nela que nos reconhecemos sem esforço, é onde está a nossa história. Quando a saudade aperta, muitas vezes estamos dizendo: “Eu preciso me lembrar de quem eu sou”. Sentir falta da família pode ser, então, uma busca por reconexão com a nossa própria essência.
Além disso, existe o desafio de criar novas raízes em um território que nem sempre nos acolhe com facilidade. O pertencimento é um processo. E sentir saudade da família é um lembrete de que ainda estamos construindo esse novo chão. É como se o coração dissesse: “eu pertenço a mais de um lugar”. E talvez a grande coragem da mulher imigrante seja justamente essa: viver com o coração dividido, e ainda assim, seguir em frente.
A saudade como expressão da singularidade
Yalom, ao falar sobre a solidão existencial, lembra que há dores que são apenas nossas. A saudade é uma dessas dores — não apenas por sua intensidade, mas pela sua singularidade. Ela carrega lembranças que pertencem exclusivamente a quem as viveu. São cenas que não se repetem, sons que só ecoam na memória de quem esteve presente. A saudade é feita de detalhes: o jeito que seu pai chamava seu nome, o cheiro do almoço de domingo, a risada compartilhada no portão de casa.
É um sentimento que habita o íntimo e que não encontra tradução completa nas palavras. Por isso, mesmo cercada de pessoas, é possível sentir-se profundamente só quando a saudade bate. Ela nos transporta para tempos e espaços que apenas nós conhecemos — como se abríssemos um álbum invisível, onde cada página é uma emoção. Em datas comemorativas ou momentos inesperados do dia a dia, ela pode surgir com força, trazendo à tona o quanto os vínculos são insubstituíveis.
Mais do que ausência, a saudade é presença condensada: de uma história, de um afeto, de uma parte da nossa identidade. E talvez, justamente por isso, mereça ser acolhida com reverência — como quem visita um lugar sagrado dentro de si.
Acolher a saudade: um ato de coragem
Muitas vezes, por vergonha ou por medo de parecer fraca, a mulher imigrante tenta esconder a saudade. Mas acolher essa emoção é um ato de coragem. Validar a dor é parte do processo de autoconhecimento. Como diria Rogers, “quando me aceito como sou, então posso mudar”. Aceitar que sentimos falta, que sentimos dor, é um passo essencial para cuidarmos de nós mesmas.
A saudade precisa de espaço. Pode ser através da escrita, de uma conversa com uma amiga, de uma terapia, de um álbum de fotos, de uma chamada de vídeo. O que não pode é ser reprimida. Porque aquilo que reprimimos, adoece. E a saudade não precisa nos adoecer. Sua intenção é nos lembrar de onde viemos.
Criar pequenos rituais também pode ajudar: acender uma vela, fazer uma oração (quando isso fizer sentido para você), cozinhar uma comida que lembra a infância, escrever cartas (mesmo que não sejam enviadas). Esses gestos simbólicos acolhem a saudade e transformam a ausência em presença emocional.
Encontrar sentido no distanciamento
Frankl dizia que a vida tem sentido em todas as circunstâncias, mesmo nas mais difíceis. E talvez o sentido da saudade seja nos mostrar que ainda estamos conectadas. Que mesmo longe, o amor permanece. Que a ausência pode ser também uma forma de presença.
Para muitas mulheres, morar fora do país é uma escolha que veio com propósito: oferecer uma vida melhor para os filhos, realizar um sonho, buscar crescimento pessoal. Relembrar esse propósito ajuda a ressignificar a dor da saudade. Não é sobre minimizar o que sentimos, mas entender que essa dor é parte do caminho.
Essa busca por sentido não precisa ser grandiosa. Às vezes, está no simples fato de poder olhar para trás e dizer: “eu tive coragem”. Ou no desejo de ser exemplo para as próximas gerações. Ou ainda, na esperança de que esse movimento de ir para o mundo possa também transformar e enriquecer as raízes que deixamos para trás.
Cultivar vínculos, mesmo de longe
Uma das formas de lidar com a saudade é manter os laços afetivos vivos, ainda que à distância. Pequenos gestos fazem grande diferença: uma mensagem carinhosa, uma ligação de vídeo, um presente enviado pelo correio. O vínculo não depende apenas da presença física, mas da disponibilidade emocional.
Para quem tem filhos, incluir os avós e tios na rotina pode ser uma forma bonita de transmitir a cultura e manter vivas as memórias familiares. Cantar músicas, contar histórias, mostrar fotos, ensinar receitas… Tudo isso constrói pontes. Mesmo longe, é possível estar presente.
Também é possível criar novos espaços de conexão com outras pessoas que estão na mesma jornada. Formar redes de apoio entre brasileiras no exterior, participar de grupos de acolhimento, trocar experiências, rir junto, chorar junto. Porque, no fim das contas, pertencer também é isso: compartilhar aquilo que nos atravessa.
Espaço para o luto e para a gratidão
A saudade também é um tipo de luto: o luto da convivência, do cotidiano, da presença fácil. Dar espaço para esse luto é essencial. Não se trata de alimentar a tristeza, mas de dar-lhe voz. Toda despedida carrega um pouco de dor. Mas também carrega gratidão: pela história vivida, pelos abraços trocados, pelas memórias construídas.
Podemos aprender a conviver com a saudade como quem aprende a conviver com uma cicatriz: ela não desaparece, mas pode deixar de doer tanto. E pode, inclusive, nos lembrar da beleza de ter vivido algo que vale a pena lembrar.
A saudade nos humaniza. Nos lembra da nossa vulnerabilidade. Nos aproxima da nossa verdade. Quando olhamos para ela com respeito e ternura, ela pode nos conduzir a um nível mais profundo de conexão consigo mesmas, com os outros e com a vida.
Conclusão: a saudade como ponte
Sentir saudade da família quando se mora no exterior é um dos sentimentos mais profundos e complexos da experiência migratória. É sinal de amor, de conexão, de identidade. É uma dor que fala do que temos de mais valioso: nossos vínculos.
Que possamos, então, acolher essa saudade com gentileza, para que ela nos lembre de quem somos, de onde viemos, e do que nos é essencial. Que ela não nos paralise, mas nos conecte. E que, mesmo distantes, possamos continuar construindo laços de afeto, pertença e sentido.
Porque no fim das contas, como bem disse Rollo May, “a liberdade é a capacidade de moldar o nosso destino”. E quando fazemos isso com consciência e amor, mesmo a saudade pode se tornar uma aliada na nossa jornada.
Dicas práticas para lidar com a saudade da família no exterior
Quando você sentir saudade da família (ou do Brasil, em geral), aqui vão algumas sugestões práticas e sensíveis que podem te ajudar a transformar essa dor em cuidado:
- Mantenha rituais de conexão: reserve um horário fixo na semana para fazer uma chamada de vídeo com quem você ama. Ter esse momento previsto na rotina pode acalmar o coração.
- Crie espaços simbólicos: monte um cantinho com fotos, objetos ou lembranças que representem sua família. Esse espaço pode ser um refúgio emocional quando a saudade apertar.
- Escreva cartas ou diários: colocar no papel o que você sente pode ajudar a organizar os pensamentos e aliviar a intensidade da saudade. Escreva cartas para seus familiares (mesmo que não envie).
- Reconheça e acolha suas emoções: não se cobre para estar bem o tempo todo. Chorar, sentir tristeza ou até raiva faz parte do processo. Acolha essas emoções com compaixão.
- Cuide do corpo e da mente: a saudade também se manifesta fisicamente. Procure dormir bem, alimentar-se com cuidado e movimentar o corpo. Meditação e exercícios de respiração também podem ajudar.
- Conecte-se com outras brasileiras: conversar com quem vive desafios parecidos pode trazer conforto e sensação de pertencimento. Busque redes de apoio locais ou online.
- Celebre a cultura brasileira: cozinhe pratos típicos, ouça músicas que te conectem com sua infância, celebre datas especiais à sua maneira. Essas ações fortalecem os vínculos com sua história.
- Busque apoio profissional se precisar: se a saudade estiver muito intensa e impactando sua qualidade de vida, considere buscar ajuda psicológica. Você merece esse cuidado.
Se você sente saudade da família e está buscando um espaço seguro para acolher essa emoção, lembre-se: você não está sozinha. Procure apoio, converse, escreva, compartilhe. A sua dor importa. E ela também pode se transformar em força.